As árvores crescem sós. E a sós florescem.
Começam por ser nada. Pouco a pouco se levantam do chão,
se alteiam palmo a palmo.
Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.
Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.
E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.
Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida como se nada fosse.
As árvores não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.
Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
a crescer e a florir sem consciência.
Virtude vegetal viver a sós
e entretanto dar flores.
(Antônio Gedeão)
Fotos, desenhos, poemas, lembranças, rabiscos, experimentos em um sótão... Como diria Cecilia Salles em “Gesto Inacabado”, essas foram algumas das minhas pegadas deixadas durante o processo de criação da célula “coluna vertebral”.
Aos leitores ocasionais, a célula “coluna vertebral” diz respeito ao primeiro trabalho proposto pela professora Rosemeri Rocha na disciplina de Composição Coreográfica I do curso de Dança da Faculdade de Artes do Paraná.
Em suma, se tratava de compor uma partitura de movimento a partir das relações estabelecidas por cada um de nós (alunos) com o tema central: “coluna vertebral”.
Minhas relações partiram da medula espinhal, não necessariamente da constituição óssea sugerida. Essa estrutura nervosa com todas as suas ramificações, bifurcações, tramas, redes, similar a estrutura dos tecidos de condução das seivas bruta e elaborada das árvores ficou como minha referência. Por sua vez, essas duas imagens trouxeram outro apontamento, a de uma árvore genealógica. Essa, enfim, se tornou a idéia central da minha partitura.
De acordo com Rosa Hércoles em “Corpo e Dramaturgia”, o conceito (mente) e o processo (corpo), são indissociáveis, se formulam e se definem concomitantemente, dialeticamente. Partindo dessa premissa, laboratórios e reflexões se deram simultaneamente, se alterando na mesma freqüência. Os conceitos, a idéia de árvore genealógica - a minha especialmente, ia se transformando durante as experimentações, durante os processos, da mesma forma que os processos iam sendo modificados, a partir dos novos conceitos que iam sendo estabelecidos.
Inicialmente, mesmo com a liberdade de relações que poderiam ser estabelecidas a partir da restrição “coluna vertebral”, houve certa dificuldade de aproximação com a proposição, ainda mais porque existia outro agravante, escasso espaço de tempo para a pesquisa. Jorge Larrosa Bondía em “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”, aponta que a velocidade dos acontecimentos, a falta de silêncio, de tempo e de memória, impede a conexão significativa e intensa com o que nos acontece, com o que nos passa. Ludibriar os empecilhos que impossibilitam uma experiência plena foi um dos grandes desafios desse processo.
Em um segundo momento, paralelo aos nossos laboratórios particulares nos foi sugerido que aplicássemos nosso procedimento de pesquisa à outra pessoa da turma. A forma como a mesma idéia se materializa distintamente nos corpos, permite compreender os muitos meios de fazer/ser um conceito. Amplia-se o vocabulário de ação.
Finalmente, apenas nas últimas investigações que a proposição estava se tornando mais orgânica e coerente. Ao revisitar, relembrar e ‘re-experienciar’ os vestígios armazenados do processo criativo, o conceito (mente) se tornou mais claro no processo (corpo), e o inverso também. Uma unidade a partir de fragmentos começou a se estabelecer mais claramente. Uma unidade que culminou em movimentos de pés e pernas, centro axial, braços e mãos, movimentos de um corpo/indivíduo/história.
Sylviane Guilherme
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