quarta-feira, 21 de setembro de 2011

MAIANITA: Compartilhamento de reflexões de leitura

Aos leitores ocasionais informo que o presente texto diz respeito ao cumprimento do trabalho proposto pelo professor Giancarlo Martins da disciplina de Composição Coreográfica II do curso de Dança da Faculdade de Artes do Paraná no corrente bimestre.

A proposta era de elaborarmos um comentário acerca de uma leitura, palestra, filme, obra artística que tivéssemos tido contato nesse período, e que de alguma forma houvesse suscitado reflexões que poderiam contribuir para o andamento da pesquisa que estamos desenvolvendo.

Minha pesquisa tem claro o ponto de partida: discutir arte/dança na perspectiva marxista, assim como compreender a arte pós-moderna que estamos contemplando e, dessa forma, pensar/criar uma dança que, em oposição à arte fragmentada e esvaziada feita atualmente, tenha como premissa a valorização do homem enquanto ser integral.

Para tanto, trago como mote para esse compartilhamento de reflexões o livro “Crianças de Fibra” de Iolanda Huzak e Jô Azevedo. Respectivamente, fotógrafa e jornalista, durante nove meses percorreram o país produzindo reportagens sobre a exploração da mão-de-obra infantil. Como minha pesquisa cênica intitulada MAIANITA tem como esteio a discussão acerca do feminino na infância, e não pretende abordar apenas a doçura e ludicidade da mesma, em um dos trechos do trabalho a questão do trabalho infantil se torna o foco. Por esse motivo, “Crianças de Fibra” se apresentou como congruente incontestável à proposição.

A exploração da força de trabalho do homem pelo homem já se configura como atroz e desumana, quando a estendemos às crianças tal atrocidade toma proporções que beiram à insanidade.

Na apresentação da obra, Oded Grajew reforça a insensatez posta na condição de trabalhadores das crianças do nosso país: “O Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe o trabalho de crianças com menos de 14 anos. Mas 2 milhões de crianças brasileiras entre 10 e 13 anos trabalham. (...) O que significa isso? Essas crianças são filhos de 20 milhões de trabalhadores do país, desempregados ou mesmo empregados que recebem menos que um salário-mínimo por mês, ou até nem recebem pelo que fazem. Qual o futuro desses jovens? Seu destino já está traçado pela sua condição. Vão continuar as relações de trabalho arcaicas dos pais, se tornar subcidadãos desconhecedores de seus direitos mais elementares, se formando nas dificuldades de ganhar o pão (HUZAK, 1994, p. 7).”

O trato que desprendemos às nossas crianças refletirá na sociedade que teremos no porvir. Evidentemente, que, não oferecer condições básicas para que o indivíduo se desenvolva dignamente, fadam os projetos futuros de sociedade progressista ao fracasso. Ë na infância que desenvolvemos com maior potencialidade aspectos psicomotores, cognitivos, afetivos e sociais. Negligenciadas tais premissas, o que construiremos será uma sociedade subserviente e alienada.

Um dos principais problemas ocasionados pelo trabalho infantil é a negação do pleno acesso à educação de qualidade. Não necessariamente me refiro à educação formal, mas àquela no sentido lato, àquela que acontece ao longo de toda a vida, e que garante o desenvolvimento integral das esferas que compõem o homem.

Para justificar tal posicionamento em relação à educação, Mészáros parafraseia José Martí com maestria quando escreve “(...) ser cultos es el único modo de ser libres”. E resumia de modo sublime a razão de ser da própria educação: “Educar es depositar en cada hombre toda la obra humana que le ha antecedido; es hacera cada hombre resumen del mundo viviente hasta el día en que vive” (2004, p.11).

Dessa forma, privar uma criança/indivíduo de ter acesso irrestrito ao que foi prozudido historicamente pela humanidade, significa negar a mesma sua própria gênese, sua identidade enquanto gênero/espécie, sua existência enquanto ser social. E não se compreender como construtor da história encerra sua trajetória na resignação e no servilismo. Nada mal para uma sociedade regida por uma classe domintante que prevê a manutenção dos seus privilégios a partir da exploração dos violentados, não é mesmo?

É na contramão dessa lógica que artisticamente venho propor um trabalho que denuncie, ou ao menos que traga para as pautas de discussão cênica a questão da infância no capitalismo.

Além do livro, outra obra que veio corroborar com tais reflexões foi o filme “Crianças Invisíveis”. Nele, sete diretores apresentam uma densa e poética viagem pelo mundo de crianças sufocadas pelas atrocidades do capital. O trecho rodado no Brasil traz exatamente a questão do trabalho infantil como cerne.

“Crianças Invisíveis”: http://www.youtube.com/watch?v=trGs9Jmeom0

““A vida no carvão é sacrificada demais.” Nos fornos da fazendo Bonito, em Água Clara, um pequenino herói: Sérgio, 7 anos, recolhe carvão. Parece um homenzinho, com a calça aberta no cós, sandálias de pneu nas pés cheios de feridas e os cabelos secos e eriçados. A mãe, Ana Rosa, esqueceu quantos anos tem. Magra e debilitada, olhos roxos, lava panelas na frente da tenda de lona plástica. Em um outro barraco, a sobrinha Jaqueline, 25 anos, com a filhinha de 16 meses nos braço, narra. Ana Rosa e o marido trabalharam 10 meses sem receber um tostão. A mulher enchia e tirava quatro fornos diários. O empreiteiro apanhava a lista quinzenal das compras, trazia os alimentos e ficava por isso mesmo. Há duas semanas, o marido chegou bêbado, depois de um encontro com o empreiteiro, espancou e esfaqueou a mulher. (...) Sérgio escuta tudo calado, no seu cantinho. Diz que já foi à escola uma vez, na cidade onde moravam os pais, mas saiu “sem saber escrever o nome”. Não sabe se quer voltar para a escola: “A gente só quer ir embora, mas não sabe como”, ele diz, e volta para os fornos (HUZAK, 1994, p. 31).”

Tais relatos me corroem... E é em virtude dessa indignação que coloco minha arte como uma aliada para, minimamente, fazer palpáveis essas histórias de crianças com tanta fibra, porém tão invisíveis aos olhos fúteis e arrefecidos da nossa sociedade.

Finalizo com um trecho de “Cartas da Mãe” de Henfil, quando o mesmo escreve para a sua fazendo referência ao saque histórico do chamado “Descobrimento do Brasil” que se estende até a atualidade. Tal fragmento, a mim soa como pertinente no que se refere ao nosso trato com as crianças ao longo desses séculos: “A SENHORA É CÚMPLICE! Perdoe a frase de efeito. Mas quem agora sabe e não impedir esse genocídio passa a ser cúmplice. Do presidente à minha mãe.” E você, também vai permanecer engrossando esse coro?

SYLVIANE GUILHERME

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