sábado, 25 de junho de 2011

MAIANITA: Compartilhamento de reflexões de leitura


Aos leitores ocasionais informo que o presente texto diz respeito ao cumprimento do trabalho proposto pelo professor Giancarlo Martins da disciplina de Composição Coreográfica II do curso de Dança da Faculdade de Artes do Paraná do corrente bimestre.

A proposta era de elaborarmos um comentário acerca de uma leitura, palestra, filme, obra artística que tivéssemos tido contato nesse período, e que de alguma forma houvesse suscitado reflexões que poderiam contribuir para o andamento da pesquisa que estamos desenvolvendo.

Minha pesquisa, denominada de MAIANITA, tem claro o ponto de partida: discutir arte/dança na perspectiva marxista, assim como compreender a arte pós-moderna que estamos contemplando e, dessa forma, pensar/criar uma dança que, em oposição à arte fragmentada e esvaziada feita atualmente, tenha como premissa a valorização do homem enquanto ser integral.

Para tanto, trago como mote para esse compartilhamento de reflexões o artigo apresentado no V Encontro Brasileiro de Educação e Marxismo: Marxismo, Educação e Emancipação Humana [1], organizado pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC - abril/2011, pelo professor doutor Paulo C. Duarte Paes da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, intitulado “As idéias estéticas de Marx e a arte pós-moderna” [2].

Além da leitura desse material, tive o privilégio de conversar presencialmente com esse artista/pesquisador. Encontrar esse professor e ler seu artigo foi um divisor de águas na minha pesquisa. Muitos dos meus questionamentos estavam contemplados no seu escrito. Encontrar artistas/pesquisadores que estão voltados para o estudo, reflexão e produção, tanto científica quanto artística, sustentada no materialismo histórico dialético, é para mim um deleite.

Em suma, o texto traz como objetivo central compreender a arte pós-moderna, a partir de categorias do pensamento marxista, para elucidar sua relação com interesses econômicos velados no complexo emaranhado de teorias que lhe dão sustentação, através do estudo de autores que tratam o tema numa abordagem crítica e de exemplos da própria arte (PAES, 2011, p. 1).

Inicia seu estudo com uma afirmação elementar a todo teórico que se pressupõe marxista, a compreensão do trabalho como categoria fundante do homem. O trabalho é compreendido nessa perspectiva como todas as ações estabelecidas pelo homem para produzir e reproduzir vida, para dominar a natureza e produzir conforto, ou ainda para criar condições para que as primeiras sejam realizadas. Reitera ainda que, portanto, a origem da arte está no trabalho. A arte é uma forma de reproduzir vida. Os homens produzem objetos com finalidade objetiva, funcional e outros sem utilidade no sentido imediato, porém com formas sensíveis que podem ser sentidas posteriormente por seus observadores. A esse último objeto chamamos de obra de arte.

A forma da obra de arte materializada em um objeto nas artes visuais, por exemplo, pode ser transposta ao movimento quando nos propomos a pensar a dança nessa perspectiva. Existem movimentos corporais produzidos pelo homem que têm uma finalidade funcional e utilitária primeira. O agachar de um agricultor para plantar mandioca tem como objetivo dominar a natureza, cultivar o alimento, produzir vida. Entretanto, quando um homem extrai o aspecto estético desse movimento funcional, e o realiza sem essa finalidade utilitária, carregando-o de formas sensíveis, sentidos e significados, então se produz dança.

Desse modo, o fazer artístico, o fazer da obra de arte, do objeto artístico ergue o sujeito ao desenvolvimento de potencialidades mais elevadas do que qualquer outro objeto produzido por ele. Ao libertar-se da utilidade material dos produtos do trabalho essa dimensão estética eleva-se a um nível superior, tornando-se arte e relação social que cria não apenas o objeto, mas o próprio sujeito (VÁZQUEZ apud PAES, 2011, p. 2).

Abarcar a dança dessa forma nos auxilia a compreender que o homem é histórico. A obra de arte carrega em si essa história ou parte dela. O que se sente e se pensa no presente é fruto da produção histórica de homens e mulheres. A arte não é produto do acaso, do imediatismo, mas sim de tudo que foi produzido anteriormente, e que no fazer artístico é enriquecido pela subjetividade de quem o produz.

Essa historicidade vem sendo apartada das obras de arte. Na dança isso se configura de forma ainda mais intensa. O esvaziamento da compreensão do corpo, portanto, do indivíduo, do ser social como uma resultante não acabada de milhares de anos de relações de homens e mulheres nas empreitadas de produzir e reproduzir vida desemboca na fragmentação de todas as esferas da vida social.

O pensamento pós-moderno, fruto do capitalismo das últimas décadas, se propôs a aniquilar a racionalização histórica das relações sociais, assim como, desqualificar qualquer entendimento da vida humana fundamentada na história, e na compreensão da cultura humana como totalidade.

No artigo, Paes cita um trecho de Marilena Chauí crucial para compreender como os tentáculos da pós-modernidade envolveram as artes. Para a ideologia pós-moderna, a razão, a verdade e a história são mitos totalitários e essa negação da racionalidade, com origens históricas e interesses claros, tem se estabelecido nas artes.

“O pensamento pós-moderno não é apenas indiferente à realidade histórica, mas tem na antihistoricidade sua principal caracterização estética. A realidade mesma não é a matriz ou referência objetiva da obra de arte, mas tão somente uma eclética e irracionalizável multiplicidade de referentes desconectados. A matriz da obra pós-moderna é a própria forma contida na linguagem, como se esta fosse anterior, determinante e totalmente alheia a história (JAMESON apud PAES, 2011, p. 9)”.

É exatamente aqui que podemos aprofundar nossas reflexões acerca da dança. Afinal, a ‘própria forma contida na linguagem’ que vem servindo como matriz para as composições coreográficas não é o corpo e suas possibilidades de movimento? Esse corpo por ele mesmo sem história? Sem história sim, porque não basta falar das experiências particulares desse corpo e argumentar que assim está sendo considerada a historicidade do mesmo. Esse corpo é um corpo oprimido ou opressor? É um corpo que vende força de trabalho, ou expropria força de trabalho alheia? Um corpo que se alimenta de restos industriais nos lixões, ou de frutos e folhas frescas colhidos na hora? Um corpo resignado e desacreditado, ou um corpo inquieto e questionador? Um corpo que foi gerado por caminhoneiro e costureira sobre terra vermelha, ou um corpo criado por latifundiário e empresária no alto de um arranha-céu? Um corpo negro, um corpo índio? Um corpo feminino, um corpo masculino? Um corpo violentado, ou um corpo casto? Cada um desses corpos carrega a história de todo o ser social que o gerou. Falar dele isoladamente desconsiderando cenicamente suas determinantes concretas é mesmo que descartar a racionalização do todo histórico e social que o engendrou. Dessa forma, o homem está sendo privado da compreensão, inclusive estética e artística, da sua existência enquanto sujeito histórico, o está sendo negada a compreensão da sua própria essência humana.

Evidente que o autor se debruça com mais profundidade sobre vários outros aspectos nesse artigo, entretanto, é sobre esses que opto no momento. Minhas reflexões não se esgotam aqui, elas se derramam e se desdobram em outros tantos pontos levantados pelo autor, mas por hora, acho que são suficientes para iniciarmos uma reflexão mais radical, que vai à raiz do problema, sobre a concepção de corpo, de dança e de arte que queremos construir, seja para revolucionar ou manter a organização societária na qual estamos inseridos.

SYLVIANE GUILHERME

[1] http://www.5ebem.ufsc.br/index.php

[2] http://www.5ebem.ufsc.br/trabalhos/eixo_08/e08b_t008.pdf

Um comentário:

  1. Syl, sua pesquisa é de extrema importância na dança! É muito bom ler um trabalho tão bem fundamentado, que nos elucida muitas coisas que sentimos, mas não sabemos como validar cientificamente. Vejo que esse é um momento no qual as contradições chegam ao seu ápice, e fica muito difícil para todos nós lidarmos com elas, as resistências psicológicas, corporais e afetivas vão se esgotando, e só fica essa marca de cansaço e o imenso vazio. Mas ler algo como o seu texto reacende a esperança, reconstrói as forças...
    As coisas que tenho lido se relacionam exatamente com isso que você escreve, e fico feliz de poder ler algo que me acrescente em conhecimento e me ajude a esclarecer essas questões tão intocáveis e intangíveis da pós-modernidade.
    Ao ler esse texto e somá-lo com o que vi hoje do seu trabalho não tenho dúvidas que, como diria o Saramago, você está entre uns tantos poucos que ao invés de ser empurrado pela máquina, a empurra num movimento contrário, numa atitude crítica perante as coisas. Parabéns pelo lindo trabalho e aprofunde cada vez mais, pois é o que precisamos!
    Como agradecimento deixo essa linda canção do Tim Maia, cantada pela feminina e fortíssima Fafá de Belém:

    http://www.youtube.com/watch?v=6NmEDEWLiz4


    Canário do Reino
    Tim Maia
    Não precisa de dinheiro
    Pra se ouvir meu canto
    Eu sou canário do reino
    E canto em qualquer lugar
    Em qualquer rua de qualquer cidade
    Em qualquer praça de qualquer pais
    Levo o meu canto puro e verdadeiro
    Eu quero que o mundo inteiro
    Se sinta feliz
    Cau ê, cau á
    Não precisa de dinheiro pra me ouvir cantar
    Cau ê, cau á
    Sou canário do reino, canto em qualquer lugar

    Obrigada!
    Rose Mara da Silva

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